Aldaiza Sposati faz um diagnóstico da situação social da cidade de São Paulo durante o programa Encontros Plurais Notícias

27/06/2020 11:00

As camadas mais pobres da população são as que mais sofrem com os efeitos do coronavírus, o que evidencia a importância de políticas de assistência social entre as ações para enfrentamento da pandemia. Mas não só da pandemia, sustentou a doutora em serviço social, Aldaiza Sposati, durante uma entrevista para o jornalista Florestan Fernandes Jr. e o diretor-presidente da Escola de Gestão do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP), Maurício/Xixo Piragino, no programa Encontros Plurais, na manhã de sexta-feira (26/06).

A especialista falou do atual período crítico de enfrentamento da pandemia de Covid-19, mas, antes, destacou a relevância da assistência social desde a Constituição Federal de 1988. "Foi uma vitória enorme que na Constituição se considerasse a seguridade social, incluindo a assistência social. Sabemos que isso tem alguns interesses que ali se colocavam, por exemplo, a Previdência Social queria deixar de ser responsável pela renda mensal vitalícia, que hoje é o chamado BPC [Benefício de Prestação Continuada], criado em 1974. A outra, é que a Saúde queria, na verdade, as iniciativas que eram da LBA [Legião Brasileira de Assistência] no sentindo da atenção materna infantil, inclusive hospitais e algumas atenções que eram prestadas. Portanto, era interessante que a Assistência Social agregasse a seguridade para que essas áreas fossem repartidas. Assim foi, e tanto que, entre as três áreas, na Constituição de 1988, a Assistência Social só tem dois artigos (o Art. 203 e o Art. 204). Era pouca coisa que tinha a se dizer porque os interesses estavam claros ali colocados no que já relatei", contextualizou. "Sua lei orgânica foi a última, promulgada em 1993; as outras já tinham saído, a da Saúde foi muito mais completa, o SUS[Sistema Único de Saúde] já foi incorporado na própria Constituição. Então, a Assistência Social é tardia nesse conjunto, e é tardia até hoje", completou.

Para Sposati, a Seguridade Social no Brasil é mais como uma referência, um guarda-chuva, mas não um processo concreto. "O próprio Conselho Nacional de Seguridade Social teve um ano e foi desmanchado. O orçamento da Seguridade Social, embora seja uma referência, tem pouco tempo de vida. Isto é, nós não conseguimos, até hoje, que se tivesse uma noção concreta de Seguridade Social no sentido de que o Estado brasileiro é responsável pela proteção social do cidadão em um conjunto de condições."

Diante disso, a entrevistada afirmou que "estamos vendo hoje, diante da pandemia, como a Saúde está tornando visível o que é preciso que se tenha para que em momentos de gravidade e de vulnerabilidade da vida ela possa responder à altura e o Estado possa responder à altura", disse. "Estamos vendo também que os entes federativos, a União, os Estados e os Municípios, estão caminhando às apalpadelas porque não existe propriamente uma clareza de até onde vai a proteção em momentos que são cruciais à vida. [...] Diria que aceitar, entender, efetivar que seguridade social, a proteção social é uma responsabilidade pública, estatal e dos três entes federativos ainda é muito difícil."

Sposati lançou um olhar sobre o esgarçamento que o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) vive em São Paulo. "Os governos, a partir de 2005, são imbuídos de uma noção de que São Paulo não deve seguir a nomenclatura federal, não deve ser idêntico ao resto do país, São Paulo é como uma bandeirinha livre. Então, se o programa que está tipificado compõe o SUAS, ele, por exemplo, se chama Programa de Atenção Integral à Família, aqui em São Paulo não vai ter esse nome, inventa-se um novo nome e a identidade coletiva no país é aqui esgarçada e assim permanece. Essa é uma questão muito séria. E ao ter esse esgarçamento, a consolidação dos direitos socioassistenciais fica esgarçada também", explicou.

Sobre a desigualdade social, que hoje é tão forte, de acordo com a professora, e chegou a tal patamar que a gente chama de invisível um contingente que, numericamente, é extremamente significativo e chega a quase 50% da população. "Acho que é muito mais da falha ótica de quem olha do que essa população, na sua materialidade, ser propriamente invisível. Então, o fato de nós sermos a grande metrópole da América Latina, com volume de população que nem água tratada tem, que esgoto não tem, uma população que não tem a oferta habitacional necessária, uma população que está realmente agregada em vários territórios, e territórios precários, em geral, que não permitem que elas sejam reconhecidas como proprietárias, ou seja, é uma população não-proprietária, é pelo reconhecimento mútuo entre aqueles que ali habitam que vai dar unidade. Nós estamos vendo iniciativas em Paraisópolis, temos, inclusive, iniciativas em Perus, onde os grupos articulados dessas comunidades já criaram o que eles chamam de Sevirologia, isto é, os modos de se virar da própria população diante da ausência e da negação do Estado em estender seus serviços”, declarou.

A professora, que também foi secretária das Administrações Regionais, comentou na conversa sobre seu aprendizado com os desafios da zeladoria como forma de reduzir as desigualdades territoriais. “Perdemos em São Paulo, apesar de termos, finalmente, as subprefeituras, o significado dos territórios da cidade. Quando olhamos os resultados da incidência da Covid, os locais onde ela está mais incidente são exatamente os locais que o trabalho que nós fizemos, desde 1995, do Mapa da Inclusão e Exclusão Social da Cidade, que mostra os territórios de maior incidência da exclusão. Então, chamar isso de invisível depois de tanta demonstração de precariedade de tratamento e resposta é, na verdade, até motivo cômico”, avaliou. "Aprendi muito na gestão das regionais, exatamente pela diferença entre gerir uma região de Pinheiros e gerir uma Zona Sul, as diferenças que estavam colocadas. Diferenças de situações de uma oferta já instalada e do critério de manutenção dessa instalação", observou sobre a oferta de serviços para cada região da cidade.

Constatando o agravamento do desemprego no atual cenário, Sposati declarou que, de certa forma, já passou da hora de São Paulo apresentar um projeto para enfrentar o que vem pela frente. "Penso que esse trabalho de recuperação tem que ser fortalecido com oportunidade de trabalho e salário, mas isso implica que o capital privado tenha realmente mais interesse distributivista do que acumulador. [...] Acho que nós temos que entrar em outra fase, na qual possamos compartir, repartir um pouco a nossa vida em sociedade com mais dignidade no futuro. Isso implica múltiplas forças", examinou.

Quando Xixo perguntou quais ferramentas poderiam ser colocadas com a ampliação dos moradores de rua, Aldaiza Sposati observou que quem vive nas ruas não consta nem no censo brasileiro, "não é nem número", disse. "A primeira coisa é fazer com que o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] entenda que nós temos uma população de brasileiros que, porque não tem teto, quero dizer, vivem na sola do seu pé, na sola da sua sandália, não são considerados, e este número, que a última contagem em São Paulo foi 25 mil, é estimado em 250 mil no país todo. Não sabemos essa incidência da população em situação de rua. Eles são invisíveis, ou se quer deixar que sejam invisíveis? Temos aqui uma grande questão de fundo. E a outra coisa em relação à população em situação de rua é a questão de como desenvolver um programa para a saída das ruas", indagou levantando outras dúvidas, como: “por que programas itinerantes feitos durante a pandemia não continuam?”.

Sposati foi além e lembrou leituras de gestores que abstraem a condição de que todos têm igualdade à cidadania. "São leituras que partem do suposto de que tem os 'coitados' e os 'outros' e que os coitados podem ficar na situação de coitados, que não têm absolutamente o direito de serem brasileiros com dignidade. [...] Entendo que, de fato, nós termos população –  mulheres, homens, crianças, adultos – em situação de rua é indigno para cada um de nós. Não é indigno para eles, é indigno para nós que o outro brasileiro tenha que estar nesta situação. É impossível que uma cidade como esta tenha que conviver com isso", lamentou.

Dentro desse assunto, foram mencionados dados que apontam 28 moradores de rua mortos pela Covid-19 e 500 contaminados pela doença. O fato comprova que há um retrocesso no âmbito de políticas públicas e que a população está vivendo cada vez mais à margem. A especialista constatou que está havendo uma guerra para que o humanismo possa se manter e possa se desenvolver. "Acho que todas as iniciativas nessa direção estão tendo os seus recursos sugados. É uma direção social para o país de tão extremo individualismo que quando vem a Covid e coloca essa questão da solidariedade parece que há uma solidariedade extremamente transitória. [...] Há realmente uma falta de implicação, uma falta de potência na gestão pública brasileira para que ela possa ser mais parceira da vida e não da morte."

A ex-vereadora e ex-secretária disse ainda que entende que o TCMSP pode contribuir com esse cenário de desigualdade e políticas públicas. "Do ponto de vista de falarmos do orçamento participativo, isto é, de termos mais transparência orçamentária, vejo um papel fundamental na Escola de Gestão e Contas porque uma das experiências que tive na manutenção da cidade é a que nós desconhecemos ‘quanto custa’. [...] Não temos a clareza dos custos unitários, e para ter efetivamente participação, as referências que nós, cidadãos, temos são referências de um cotidiano mais simples, elas precisam ter equivalências para podermos dizer: 'isso é muito, isso é pouco'", finalizou.

Aldaiza Sposati ainda participou do tradicional bate-bola com Xixo e contou, inclusive, no encerramento do programa, o que está lendo e assistindo durante a quarentena imposta pela pandemia.

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