"Metade da população da cidade não tem acesso ao mercado imobiliário legal", disse Erminia Maricato, no programa Encontro Plurais Notícias

13/07/2021 19:30

Com o aumento do desemprego, a população abaixo da linha da pobreza triplicou e atinge cerca de 27 milhões de pessoas. Nos grandes centros urbanos, como São Paulo, milhares de trabalhadores perderam seus empregos e até suas casas. A população de rua aumentou cerca de 25% nos últimos anos e soma atualmente mais de 25 mil pessoas. O que fazer para abrigar e dar uma vida digna para essa população? Para responder essas e outras questões, o jornalista Florestan Fernandes Jr. e o diretor-presidente da Escola Superior de Gestão e Contas Públicas (EGC) do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP), Maurício/Xixo Piragino, entrevistaram, na tarde da segunda-feira (12/07), a arquiteta e urbanista, Erminia Maricato, Medalha de Ouro na Federação Panamericana de Associações de Arquitetos.

Com o aumento do trabalho em home office, cresceu o número de devoluções de salas comerciais e uma nova questão passou a ser relevante para a cidade: "Qual o destino dos prédios que abrigavam empresas?". O jornalista Florestan Fernandes Jr. pediu à palestrante uma análise desse atual cenário. A arquiteta exibiu um mapa com informações sobre a moradia da população preta e parda, e enfoque na ocupação nas periferias. "Nós temos em todas as cidades brasileiras uma cidade que é produzida pelos próprios moradores, por meio da autoconstrução, em áreas não urbanizadas e sem registro cartorário perfeitamente legal. Quando muito, as pessoas têm contrato de compra e venda e essas casas são construídas muitas vezes em área de risco, de proteção ambiental e sem um arquiteto ou engenheiro, código de obra, parcelamento do solo e zoneamento. Essa cidade informal não é regulada. Nessa cidade sem Estado é onde nós temos uma violência notável e o que eu poderia chamar de um estado paralelo: com crime organizado e milícias, que estão se formando na cidade de São Paulo, e o pentecostalismo muito presente substituindo o Estado, com algumas ideias muito conservadoras, mas também com um papel social de apoio", destacou Erminia.

A especialista pontuou que o melhor lugar para pensar em um projeto habitacional popular é a área central, a Estação da Luz. "É o melhor lugar de mobilidade para você atingir a região metropolitana como um todo, que é um entroncamento metrorodoferroviário", afirmou.

Em outro mapa, a palestrante exibiu a chave para entender o preço do metro quadrado na cidade. "Na verdade é uma questão estrutural que explica a nossa desigualdade. É um nó da terra, é aquilo que atravessa as relações sociais do Brasil. É o rentismo fundiário imobiliário, é uma especulação, é o poder ligado ao patrimônio fundiário imobiliário que, na verdade, afasta os pobres. O que é importante reter desses mapas todos? O fato de que mais de 50% da população do município não tem acesso ao mercado imobiliário privado legal. Claro que existe um mercado imobiliário informal, mas só que mais da metade da população não tem acesso a esse mercado e ela acaba construindo a cidade informal e em um espaço que acaba não sendo regulado pela legislação que os urbanistas gostam muito de discutir, disse ela.

"Temos estudos que mostram que há mais de 1 milhão de habitantes, uma metrópole, dentro da área de preservação dos mananciais ambientalmente frágil e protegida por lei", disse a urbanista, fazendo uma comparação dessa situação com a comoção que promove a ocupação de um prédio no centro da cidade. "O prédio tem um valor de mercado e essas terras não têm. O valor de mercado delas é muito baixo, mas elas têm um valor do ponto de vista público, social, econômico e ambiental, que a nada se compara. Porém, quando um edifício que fica bem no centro da cidade, perto da sede da Prefeitura, é ocupado, o fato comove a mídia, o mercado e a sociedade. No entanto os mananciais continuam lá e muitas vezes acontece alguma intervenção em que a vítima é ré. Faço questão de lembrar dos despejos coletivos. Mais da metade da população brasileira, muito mais em alguns municípios da região metropolitana, você pode considerar que 80%, não têm acesso ao mercado e as políticas públicas. Aí as vítimas se tornam ré. Eu recebi dados hoje do despejo em São Paulo e digo que estão ameaçadas de despejo 34 mil famílias no estado e 11.600 famílias no município. Foram removidas na cidade de São Paulo 2.500 famílias durante a pandemia e tivemos uma suspensão por conta da campanha "Despejo Zero", que está muito forte no Brasil inteiro, de 1.100 famílias que estão com uma espada na cabeça, gente que perde tudo, que é jogada nas ruas. Esse é o quadro que queria dar para vocês e dizer que a discussão do Plano Diretor é importante porque dá alguma qualidade para a cidade regular-se, mas essa cidade regulada está sob ataque no Brasil todo. Os Planos Diretores estão sob ataque, é uma coisa impressionante", completou a arquiteta.

Sobre a viabilidade da discussão do Plano Diretor com a participação da sociedade mais carente, Erminia contou que a Frente em Defesa da Vida, com mais de 500 entidades e associações na cidade de São Paulo, fez uma manifestação de resistência contra o debate nesse momento. “O que a gente tem dito é que é hora de um plano emergencial, de um plano que olhe para o problema da fome que voltou a atingir o Brasil, para o problema da pandemia, com garantias como a de distribuição de máscaras, de água potável e de elementos para higienização como álcool em gel e sabão. Parece mentira, mas uma máscara eficiente custa caro para essas pessoas, uma máscara eficiente deve estar por volta de R$4,50 e isso é muito caro para quem está passando fome. Aqui nesta cidade, que é maior que Portugal, muito maior que o Uruguai, talvez equivalente ao Chile e sem considerar a região metropolitana, com um PIB [Produto Interno Bruto] significativo, encontrei famílias que estão comendo chá com bolachas porque não chega a cesta básica. E o que mais que um plano de emergência deveria ter? Sem dúvida a Saúde básica e, acima de tudo, a mídia fala muito em isolamento, mas a maior parte da população pobre não pode ficar em casa, ela não tem o que pôr na mesa, então ela sai para trabalhar e aí tem que usar o transporte coletivo. A primeira medida, vocês estão lembrados, em várias cidades desse país foi a retirada de vagões de metrô e de ônibus porque tinha diminuído a circulação. Ao invés de promovermos um transporte seguro, houve o contrário e se fala muito pouco nas condições de mobilidade. Então, eu acho que antes de mais nada, é necessário um plano emergencial, é isso que nós propusemos. Por que não discutir o Plano Diretor nesse momento? Principalmente porque como a frente diz, nem todo mundo tem uma internet eficiente em casa. Precisamos trazer uma discussão, uma disputa de narrativas sobre o que está acontecendo na cidade, sobre o que é o Plano Diretor e o que ele pode ser", esclareceu.

Falando inevitavelmente da pandemia, Maurício/Xixo Piragino perguntou se a urbanista considerou um erro não priorizar a vacinação na periferia. "Hoje nós sabemos que seria necessário priorizar as pessoas que não podiam fazer o isolamento ou quando podiam não tinham segurança dentro de casa. Eu orientei já doutorados na área de Saúde Pública e posso garantir a vocês que as condições de insalubridade nas moradias populares são muito altas e o que mais temos com essa falta de contato com sol e pouca ventilação são doenças respiratórias muito comuns nas áreas periféricas. Os cômodos estão congestionados, que é um dos indicadores de medida do déficit habitacional: Essa população, que, aliás, é a que convive com a falta de saneamento, especialmente de esgoto, tem uma exposição muito maior à disseminação do vírus do que as pessoas que moram em bairros como a Vila Madalena, Pinheiros, Perdizes e Itaim Bibi. Todos esses bairros que a densidade habitacional é muito maior oferecem mais condições de trabalho em home office e de entregas em casa. Sem dúvida nenhuma se a gente tivesse tido clareza sobre a contaminação e a morbidade do vírus, deveríamos ter começado pela população de maior idade e nas periferias muito adensadas", refletiu a arquiteta.

Ao ser questionada sobre como lidar com as pessoas que estão morando nas calçadas, a palestrante declarou que "se pelo menos uma parte dos juízes soubesse o que é a vida dessas pessoas no cotidiano não daria ordem de despejo coletivo, muito menos de prisão". O contexto a que ela se referiu foi o da ordem de prisão dada a ativista Preta Ferreira em condutas que teriam sido praticadas em ocupações promovidas por movimentos sociais de São Paulo. "Quando você fala que as pessoas não têm onde morar, elas não têm e ponto. E não têm renda. A habitação é uma mercadoria especial, ela é necessária, ninguém vive sem ela, mas tem um alto preço. Diante de tudo que a gente consome, você precisa de um financiamento e quem tem abaixo de cinco salários tem dificuldade de obtê-lo. Então, qual seria a saída? Aplicar a função social da propriedade em edifícios vazios e ociosos. Essas infraestruturas em volta desses edifícios no centro da cidade foram pagas pela sociedade: asfalto, calçamento, todo o transporte coletivo de trem, metrô e ônibus. Você tem no centro da cidade rede de hospitais, de escola, de universidades, de museus, é espetacular a condição e a gente deixa o pessoal ir para a Cantareira, que é uma área de Mata Atlântica, de serra, deixa ir para o Sul do município. Por quê? Para defender o quê? Para resguardar o interesse de indivíduos, famílias, muitas vezes de instituições que abandonaram esses edifícios. Isso não tem nada a ver com socialismos. Em qualquer país um pouco mais justo há a função social da propriedade e aqui nós temos até na legislação, isso é que é incrível”, abismou-se ao falar sobre a parte regulamentada, mas não implementada. “Temos raízes patrimonialistas fortíssimas. O Estado é capturado por uma elite branca, pela oligarquia que tem raiz em 400 anos de hegemonia agrário-exportadora. Nós tivemos 40 anos de industrialização, entre 1940 e 1980, e depois uma desindustrialização e a volta da hegemonia agraria-exportadora que está revolucionando o território do Brasil. Se você me perguntar o que é mais importante garantir nas cidades hoje, eu digo que é o controle sobre o fundo público, a transparência do investimento público. Não aguento mais ver obra sem plano e plano sem obra. Aliás, o estatuto da cidade determina que o Plano Diretor seja coerente com as diretrizes orçamentárias e o que você vê é ao contrário. Basta olhar esse monotrilho que vai para Guarulhos atravessando bairros de alta renda. O investimento não se dá de acordo com a necessidade. Talvez a pandemia, a tragédia, tenha alguma coisa boa: trazer a gente para o fundo de um poço que daqui só podemos ir para cima. Podemos nos unir, tornar a realidade mais evidente", avaliou ela.

O chefe de gabinete da EGC, Marcos Barreto, que também já foi secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano, participou do bate-papo e questionou Erminia se o modelo de parque próprio do poder público com aluguel para quem precisa de moradia seria um modelo interessante. "Sem dúvida um parque de imóveis de aluguel é interessante, mas tem que ter continuidade. É uma coisa que tem que fazer parte de um programa mesmo. Acho perfeitamente possível pensar em um parque que você mantenha uma espécie de pulmão para a população que mais precisa ao mesmo tempo que você vai implementando uma política de produção de moradia para quem tem alguma condição de comprar", respondeu a urbanista.

Sobre a reorganização da cidade estar incluída no debate da revisão do Plano Diretor Erminia afirmou que seria perfeitamente possível. “É preciso, mais do que possível. Quando escuto que não se ouve mais motor de carro em certas cidades da China e nem há emissão de poluentes, morro de inveja porque a poluição que estamos enfrentando é insuportável. Quem sabe se nesse fundo de poço que estamos conseguimos pensar que é preciso mudar mesmo. Eliminar, acabar com essa alienação trazida pela sociedade de consumo", enfatizou. Ao final do programa, em um bate-bola de perguntas e respostas, Ermínia Maricato revelou que o principal problema da cidade de São Paulo é a democratização da informação.

Para saber as outras respostas do bate-bola e mais detalhes da conversa, assista a íntegra do programa aqui: