Encontros Plurais e Cineclube da Escola comemoram centenário de Florestan Fernandes Notícias

08/09/2020 20:30

Inúmeras são as contribuições de um dos mais importantes sociólogos brasileiros, Florestan Fernandes, para a Educação no país, mas poucos conhecem sua intimidade. Entre os poucos, está o amigo e crítico literário Antonio Candido. A correspondência entre os dois deu luz à peça “Vicente e Antonio - A história da amizade de Florestan e Antonio Candido”, um hino aos encontros longevos, exibida pelo Cineclube da Escola de Gestão e Contas (EGC) do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, na terça-feira (8/9), e debatida no programa de entrevistas Encontros Plurais.
 

O texto da peça foi baseado em cartas inéditas trocadas pelo sociólogo e o crítico literário desde o início da amizade entre os dois nos anos 1940 até a morte de Florestan em 1995. De autoria de Oswaldo Mendes e direção de Eduardo Tolentino, a encenação é uma leitura de texto filmada que reúne quatro atores representando os dois amigos na juventude e na velhice.
 

Florestan Fernandes nasceu em São Paulo, em 22 de julho de 1920. Formado pela Universidade de São Paulo (USP), foi professor titular de Sociologia da mesma universidade e da Universidade de Toronto, no Canadá. Lecionou ainda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em três universidades dos Estados Unidos: Yale, Harvard e Columbia. Sua obra é composta por mais de 50 títulos. Durante sua vida, Florestan Fernandes recebeu o título de Professor Honoris Causa de dezenas universidades no mundo, entre elas a de Coimbra, em Portugal.
 

Em edição especial, o programa Encontros Plurais prestou homenagem aos 100 anos de nascimento de Florestan Fernandes, trazendo como convidados a socióloga Flávia Braga Vieira, professora de Sociologia dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o jornalista Florestan Fernandes Jr., o ator, diretor, dramaturgo e escritor Oswaldo Mendes, e o diretor presidente da EGC, Mauricio Xixo Piragino.
 

Florestan Fernandes Jr. falou sobre sua convivência com o pai. "A relação com meu pai sempre foi muito boa. Ele não fechou portas para mim, pelo contrário, deixou todas escancaradas. Tentou me dar oportunidade de fazer meus voos e pudemos trocar muitas ideias, conversar muito. Era um pai muito atento e me ajudou bastante a compreender os caminhos que eu tinha pela frente como jovem que ainda era. Eu estava em dúvida se iria para Humanas ou Exatas e depois de escolher a área de Humanas, ainda fiquei em dúvida entre Sociologia e Jornalismo. Cheguei a estudar Sociologia, mas acabei ficando com o Jornalismo e consegui, por esforço próprio, porque meu pai não tinha contatos nas redações, construir minha carreira sozinho e com muita dificuldade. As oportunidades foram aparecendo e eu consegui aproveitar e me colocar nessas oportunidades. Sempre fui apresentado como o filho do Florestan e quando me tornei repórter da TV Globo deixei de ser filho dele e ele passou a ser meu pai. A gente conseguiu construir uma amizade que foi além das relações normais de pai e filho, éramos muito amigos, muito ligados um no outro, conversávamos o tempo todo", comentou o jornalista.
 

Sobre a luta do pai pela Constituinte, Florestan Jr. definiu como um momento muito bonito. "Ele já estava com cirrose hepática, que contraiu por conta de uma transfusão de sangue contaminado, e com certa dificuldade para caminhar, mas decidiu sair candidato constituinte e praticamente renasceu naquela campanha, nas lutas pelos avanços da Educação dentro da constituinte. Ainda foi reeleito por mais um mandato", contou. Sobre a campanha do pai, o jornalista destacou que “foi muito bonita, sem aquele ranço da disputa política mesquinha, da disputa partidária que não traz nenhum benefício para a sociedade, porque ele não era um político profissional, era um intelectual. Um sociólogo que pensava o Brasil e chegava ao Congresso como o grande intelectual que era. Esse período de oito anos no Congresso deu a ele a dimensão do país dentro do Poder, dentro daquilo que é o cerne da nossa Democracia", ressaltou.
 

Professora da cadeira de Pensamento Social e Político-Brasileiro na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Flávia Vieira, revelou que quando fala para os seus alunos sobre o período dos anos 1950 até os anos 1970, no qual estão inseridos de forma muito significativa Florestan Fernandes e Antonio Candido, conta que essa é a geração mais importante. Diz que demora mais tempo na disciplina exatamente pela relevância dessa geração na conformação do que é a Ciência Social brasileira. "O tamanho deles na Sociologia não se mede apenas pela contribuição científica stricto sensu, mas fundamentalmente, pela sua contribuição na sociedade. São intelectuais públicos, são intelectuais da vida pública. Na peça, logo no começo, eles dizem 'somos de um tempo em que não se cabia em gavetas', então estava tudo misturado: a arte, a ciência, o projeto de sociedade, a disputa do projeto de sociedade. Tudo isso fazia parte da Ciência e fazia dessa Ciência mais criativa, mais contundente e que deixou as bases para todo o resto do que fazemos até hoje", afirmou.
 

Um segundo ponto de destaque na peça para a docente é o papel do professor. "Nesse momento em que os professores, seja do ensino básico, seja do ensino universitário, estão sendo tão atacados por posições mesquinhas e que na realidade desconhecem a importância da Educação e dos profissionais da Educação no processo de superação dos problemas sociais, queria destacar esse profissional tão importante que a peça enaltece. A Educação é importante para o Florestan Fernandes desde sempre. É ela que, de alguma maneira, é a redenção, é a solução para os seus problemas individuais, subjetivos de sair de uma condição de vida muito precária, muito difícil e ter uma outra vida. É ela que também é fundamental para a sua inserção no mundo e no estabelecimento dessa posição muito específica e grandiosa que ele passa a ter. Ela foi objeto fundamental tanto dos seus escritos quanto da sua atuação como intelectual público", refletiu a professora da UFRRJ.
 

Também foi de evidência para Vieira que esses intelectuais públicos engajados, Florestan e Antonio Candido, estiveram o tempo todo na defesa de um projeto de universidade e de ciência que está, não apenas relacionada com a sociedade, que tem um compromisso social, mas que tem um compromisso com a qualidade dessa ciência. "Esses grandes homens foram essenciais, são as bases para termos uma universidade com altíssima qualidade para produção do conhecimento porque está relacionado com o há de mais profundo na sociedade e está antenado com o mais diverso, plural e sólido da produção do conhecimento no Brasil e no mundo”, avaliou.
 

Na posição de entrevistador, já que o apresentador oficial do programa, Florestan Fernandes Jr., participou dessa edição comemorativa como um dos entrevistados, Maurício Xixo Piragino perguntou para Oswaldo Mendes qual foi a emoção que sentiu quando pegou as cartas para escrever a peça. "Mais do que emoção foi a alegria que senti por ter um material/fato na mão e, ao mesmo tempo, a noção do tamanho da responsabilidade que traz à tona a pergunta: 'será que vou dar conta?’. Me dou por satisfeito ao ouvir a observação da Flávia sobre a peça falar não do ontem, mas do hoje, e do futuro”, respondeu o dramaturgo.
 

Sobre o processo de escrita, o autor conta que primeiro centrou na história humana dos dois personagens e, assim, o pensamento deles veio por consequência das suas vidas, das suas opções e escolhas. “No caso específico de Vicente e Antonio, pensei no jovem. Penso sempre no jovem porque a minha geração fez o que tinha que fazer e continuamos fazendo, mas é essa geração que está vindo que pode transformar com seus equívocos. O que me chama atenção na trajetória dos dois é que eles não barateavam essa busca tanto do conhecimento quanto da cultura. Do embriagar-se da beleza, do que é capaz a poesia, a música e o teatro", avaliou o escritor da peça.
 

Revisitando a cena em que é narrado o beijo no rosto entre os dois amigos, Florestan Jr. comentou que Mendes fez muito bem ao colocar quatro personagens em cena, representando a juventude e a velhice dos personagens. "Essa conversa entre os quatro vai revelando a amizade em todos os sentidos, desde a questão afetiva à intelectual, os sonhos, as utopias que eles estavam procurando, o futuro que se colocava para eles e a importância que davam à amizade. Estamos vivendo um momento que precisamos recuperar essa humanidade, é fundamental", lembrou o filho do homenageado.
 

Nesse sentido, Oswaldo Mendes enfatizou que, mesmo sem saber se conseguiria fazer a peça, duas cenas estavam prontas em sua cabeça. "Eu sabia como a peça ia começar e terminar porque já tinha as cenas do beijo e da gravata. O Florestan foi se arrastando comprar uma gravada para dar de presente para o Candido, que fazia aniversário dois dias depois dele, e não teve nem tempo de entregar. Essas histórias são a síntese da amizade e teatralmente falando, são cenas prontas”, revelou o autor.
 

"O Oswaldo soube montar e dar vida a essas cartas e eu achei fantástico o trabalho que ele fez. Escreveu o texto em cinco meses e a ideia era estrear na Casa do Saber e depois partir para temporada no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o TUCA. Daí veio a pandemia e a gente teve que criar uma nova linguagem, que foi fazer uma leitura dramatizada em um palco e gravar como um filme. Criamos uma linguagem e tudo foi feito com muita determinação, com muito carinho e poucos recursos, mas com a colaboração de muitas pessoas", revelou Florestan Jr.
 

Durante a transmissão, foi exibido um depoimento do sociólogo, cientista político, professor universitário, escritor e ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, sobre Florestan Fernandes. A socióloga Flávia Braga Vieira argumentou que todos os pontos levantados pelo ex-presidente são mais do que centrais, mas destacou o olhar muito específico de Florestan Fernandes para grupos sociais que não tinham tanta visibilidade, sua contribuição essencial para a integração do negro na sociedade de classes. “Seu legado desmonta o mito da democracia racial no Brasil e discute democracia e desenvolvimento”, disse a professora.
 

Quando questionado sobre o que gostaria de dizer para seu pai se fosse escrever uma carta hoje, Florestan Jr. respondeu emocionado: "Que estou com muita saudade. Teria que expressar isso na sua amplitude porque a saudade contém muitas emoções, muitas situações que a gente sente falta. Quando a gente perde os pais, temos que conversar com eles através da ausência e eu converso com meu pai através da ausência. E essa aqui é uma das poucas oportunidades que tenho de falar dele sem o silêncio do meu quarto ou dos momentos que tenho para pensar na vida. Dizer que tenho saudades e que agradeço muito tudo que ele fez por mim e pelo país, que essa bandeira dele continua viva aqui no Brasil e que eu acho que foi coroada de muito êxito a comemoração do centésimo aniversário dele", finalizou, falando sobre as homenagens que Florestan Fernandes ganhou.
 

O programa foi encerrado com uma fala do professor Antonio Candido, falecido em maio de 2017, durante uma homenagem ao amigo Florestan Fernandes em um evento.
 

Assista à edição completa do programa Encontros Plurais com a exibição da peça pelo Cineclube da Escola de Gestão e Contas do TCMSP: